A Liberdade Silenciosa
- Reflexões e Inspirações
- 11 de jul.
- 3 min de leitura
A discussão sobre a regulamentação das redes sociais no Brasil voltou a ganhar força. Como em toda tentativa do Estado de “proteger” o cidadão, ela vem embalada por um discurso nobre, recheado de intenções aparentemente virtuosas: combater o crime, erradicar o discurso de ódio, proteger a democracia. Parece justo. Parece necessário. Parece o tipo de proposta que apenas os radicais ousariam contestar. Mas há uma armadilha sutil escondida justamente nessa aparência. Pois, muitas vezes, o que se apresenta como zelo é, na verdade, o verniz que encobre o desejo de controle.
A história não nos ensina em gritos, mas em sussurros. A liberdade de expressão raramente é arrancada de maneira abrupta. Ela não cai como um raio. Não há decretos que digam claramente: “A partir de hoje, você não pode mais pensar em voz alta.” Em vez disso, ela se dissolve aos poucos, como tinta em água, até que o que antes era um direito inegociável se torna um privilégio concedido — e retirado — por conveniência.
Tudo começa com o medo. Cria-se um ambiente simbólico onde o caos é a norma: criminosos digitais por toda parte, crianças em perigo, mentiras viralizando, a democracia por um fio. A partir desse medo — fabricado ou amplificado — surgem os argumentos pela “regulamentação”, que, disfarçada de medida protetiva, abre brechas perigosas para o cerceamento de ideias, críticas e vozes dissonantes.
Não se trata aqui de negar a existência de crimes digitais graves. A própria sociedade clama por mecanismos eficazes para coibir a pedofilia, a incitação ao suicídio, o racismo, o extremismo violento. A questão não é o "porquê", mas o "como". Quando os instrumentos legais são construídos sem transparência, sem delimitações claras e com amplo poder concentrado em mãos de instituições historicamente avessas ao contraditório, não estamos mais falando de justiça — estamos falando de vigilância.
Quando um presidente afirma que “hoje as pessoas falam o que querem”, e isso é apontado como um problema, o sinal de alerta não apenas se acende — ele grita. Quando se toma como modelo regimes autoritários que mascaram censura com estabilidade, o futuro se insinua sombrio. E quando o Supremo Tribunal Federal flexibiliza os marcos legais que protegiam o direito de expressão e o devido processo, autorizando punições antes mesmo de um julgamento, o que se constrói é um cenário de medo e autocensura: o silêncio como escudo, o conformismo como instinto de sobrevivência.
A linha entre discurso de ódio e crítica legítima é, e sempre será, nebulosa. O que hoje é considerado perigoso pode, amanhã, ser apenas incômodo ao poder. A liberdade de expressão é o instrumento pelo qual a sociedade ventila suas dores, desafia seus governantes e transforma suas contradições em diálogo. E é justamente por ser incômoda que tanto se deseja domá-la.
Não se trata de ser contra leis. Mas de ser a favor da clareza. Não se trata de rejeitar o combate ao crime, mas de rejeitar o uso político desse combate. Porque uma lei sem limites definidos é um convite à arbitrariedade. Um sistema sem fiscalização social é terreno fértil para a manipulação. E uma plataforma digital transformada em campo minado de censura não é mais uma arena democrática — é um teatro de sombras.
A verdade é que o livre fluxo de ideias incomoda. A multiplicidade de vozes perturba. A internet, com todas as suas distorções, ainda é o espaço mais livre já criado pelo ser humano. E, por isso mesmo, representa uma ameaça àqueles que preferem o conforto das unanimidades. A regulamentação, da forma como vem sendo proposta, não protege as pessoas. Protege o poder. E o faz travestido de cuidado.
Por isso, é preciso ir além da superfície. É preciso perguntar não apenas “o que está sendo dito?”, mas “quem está dizendo?” e, sobretudo, “quem se beneficia com o silêncio do outro?”. Pois, quando a liberdade é sufocada pelo medo, o que se instala não é a ordem, mas o autoritarismo revestido de civilidade.
A liberdade de expressão não é um detalhe ornamental da democracia — ela é sua alma. Ela é o direito de dizer o que não convém, de desafiar o consenso, de provocar incômodos. E quando esse direito começa a ser restringido sob o pretexto de proteger, o que se protege, na verdade, não é o cidadão… é o sistema.
É por isso que devemos desconfiar do discurso bonito. Porque o perigo raramente se apresenta com os olhos vermelhos do tirano. Às vezes, ele chega vestido de boas intenções, sorrindo, prometendo ordem e justiça. E quando nos damos conta, já não há mais o que dizer — e nem a quem.
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