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Reflexões e Inspirações 

O Som da Encruzilhada

Dizem que toda encruzilhada guarda mais do que caminhos: guarda segredos, destinos e escolhas que jamais podem ser desfeitas. À meia-noite, quando o silêncio do mundo pesa sobre os ombros como uma cruz, cada estrada parece sussurrar uma promessa diferente, como se o próprio asfalto respirasse. A 61 e a 49, no coração do Mississippi, não são apenas ruas que se cruzam — são o palco onde o humano e o inferno se encontram para negociar a eternidade em troca de alguns instantes de glória. Imagine-se sentado no chão frio, enquanto a chuva insiste em cair, transformando a terra em lama e o ar em um lamento constante. O violão, companheiro solitário, não é apenas madeira e cordas: é lanterna, é confissão, é guia de uma alma cansada. Cada acorde é uma prece disfarçada, cada melodia é uma ferida aberta. Ali, a música deixa de ser lazer e se torna sobrevivência. O whisky esquenta o peito, mas não aquece a alma. Porque a espera não é por alguém comum. A espera é pelo Diabo — o professor mais cruel, o maestro do abismo. A lenda é antiga e conhecida: dizem que quem toca blues demais, quem sangra nas cordas noite após noite, acaba atraindo olhos de outro mundo. O cão não se atrasa sem motivo. E quando chega, chega em chamas. Seus dedos queimam as cordas, mas ao mesmo tempo fazem nascer acordes que jamais poderiam ser inventados por mãos humanas. Ele não entrega apenas técnica: entrega poder, entrega voz, entrega fogo. Mas nada vem de graça. O inferno cobra caro, e a moeda nunca é ouro — é alma. Nesse pacto silencioso, sem contrato escrito, apenas firmado no eco da noite, uma pergunta inevitável surge: até onde você iria para deixar sua marca no mundo? Quantos de nós, mesmo sem cruzar estradas míticas, já vendemos pedaços do que somos em troca de algo que parecia inalcançável? Não precisamos estar diante do Diabo para nos perdermos. Quantas noites sem dormir sacrificamos por palmas que logo se esquecem? Quantas lágrimas escondemos atrás de sorrisos de palco? Quantos sonhos queimamos em silêncio apenas para sustentar uma chama que, no fundo, nos consome? O blues que nasce da encruzilhada não é só música. É filosofia. É poesia feita de cicatrizes. Ele nos lembra que a beleza pode vir do abismo, que a genialidade muitas vezes é fruto de dores impossíveis de carregar. Cada riff é um grito, cada nota é um pacto, cada silêncio é um preço. O artista que aceita essa sina já não pertence a si mesmo. Ele pertence ao som que o consumiu, ao eco que o inferno lhe concedeu. E quando a plateia se vai, quando as luzes se apagam, o preço começa a ser cobrado. Restam apenas os cães negros, aqueles que ninguém vê, mas que seguem cada passo. Eles são os pesadelos recorrentes, os vultos nos cantos da mente, as culpas que nunca adormecem. São a cobrança diária daquilo que foi assinado com sangue invisível. Porque não existe talento sem tormento, nem gênio sem cicatriz. Toda chama que ilumina demais, inevitavelmente queima o que toca. No fim, a chuva continua caindo. O Mississippi ferve como se estivesse vivo, mas o mundo segue girando, indiferente à dor de quem se entrega. O músico parte, acompanhado por uma presença que jamais o deixará em paz, uma sombra que dança com cada acorde. O pacto não termina com aplausos — ele apenas começa. E nós, espectadores dessa história, precisamos encarar a nossa própria encruzilhada. O que estamos dispostos a perder para brilhar? Vale a pena trocar noites de paz por dias de glória? Até que ponto a chama vale mais do que a pele? O som da encruzilhada não é apenas blues. É um sermão sem igreja, um espelho desconfortável. É a lembrança eterna de que a vida, para ser extraordinária, sempre cobra um preço. A questão é simples, mas terrível: você está preparado para pagá-lo?

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